Sei que há uma probabilidade muito reduzida de leres isto. Segundo sei, queres férias e deves ter mais que fazer do que ler cartas dirigidas a ti, muito menos uma carta minha. De qualquer modo, não ficaria bem comigo mesmo, se não deixasse estas palavras registadas na esperança que um dia, por obra do acaso, tu as encontres e percas tempo a lê-las. Agradecer não custa nada e acredita que estas palavras são sentidas.
Antes de mais, deixa-me esclarecer-te algumas coisas. Sou um rapaz português, adepto do único clube em Portugal com dimensão semelhante ao teu clube e à do seu rival mais directo. Em Espanha, não tenho nenhuma simpatia especial por nenhum dos seus dois grandes clubes. Admiro a história e a grandeza dos dois, mas a simpatia vai para o Atlético de Madrid (Futre é o culpado) e para o Athletic de Bilbau (o respeito por quem não cede ao futebol "moderno" e mantém tradições, assim o justificam).
Como disse atrás, aprendi a respeitar e a admirar o Real e o Barça ao longo destes vinte e poucos anos em que vejo bola. Já vi grandes equipas de uns e de outros. Numa dessas grandes equipas, eu vi-te jogar. Como jogador, foste do melhor que vi na tua posição. Muito à frente do teu tempo, definiste juntamente com Redondo, Albertini e Paulo Sousa, aquilo que viria a ser o "trinco" do futuro. "Destruir" jogo, por si só, já não era o único objectivo. Era preciso mais. "Destruir" e depois "construir". Saber jogar e sair a jogar. Ser o primeiro construtor de jogo de uma equipa. Tu, como jogador, foste isto tudo e fizeste-o melhor que ninguém à tua época, mesmo em comparação com os outros nomes que referi atrás. Logo aí deixas-te a tua marca. Uma marca de classe e que, passados todos estes anos, consigo perceber que eram a base da ideia de futebol que implementaste quando passaste a ser treinador.
Devo assumir-te isto, por mais ridículo que possa parecer hoje. Quando assumiste o cargo de treinador da equipa principal do Barcelona, não dava muito por ti. Achava-te demasiado "verde". Pensava que uma coisa é treinar uma equipa B e outra é treinar a equipa principal de um clube de topo. Hoje em dia, lembrar-me disto é embaraçoso, mas admito que duvidei e peço-te desculpa por ter sido tão céptico em relação a ti.
A tua herança não era fácil. O teu antecessor tinha conquistado quase tudo e pensava ser impossível ultrapassares o trabalho de Rijkaard e que serias um mero treinador de transição... Eu sei, fui ridículo. O tempo provou isso mesmo e provou muito mais. Não merece a pena pôr-me aqui a enumerar as vezes que me desmentiste. As vezes que ganhaste. Os recordes que bateste e, sobretude, as vezes que a tua equipa me encantou e deslumbrou.
Convém fazer um esclarecimento. Não foram os títulos que ganhaste (14 em 19 possíveis), nem os recordes que bateste que me fazem escrever este texto. Se fosse só por isso, já tinha escrito a outros. Por exemplo, ao meu compatriota Mourinho, já tinha escrito uma dezena de cartas. Aliás, devo dizer-te que desde que este e Ronaldo chegaram a Espanha, tenho tido alguns problemas com os meus compatriotas, por admirar o teu trabalho e o futebol da equipa que agora deixas. Sou, para alguns, uma espécie de "traidor da pátria". Chegaram ao ponto de dizer "sacrilégios", tais como, que o futebol do Barça é "aborrecido". Esquecem-se que diminuir o futebol da tua equipa, acaba por diminuir também o mérito daqueles que o conseguem derrotar.
Mas como estava a dizer-te, não foi o que ganhaste que me faz admirar-te. Ou, pelo menos, só isso. O que me faz realmente admirar-te e respeitar-te como poucos no mundo da bola, é a equipa que construíste, a identidade que criaste na mesma e a "magia" que dela emanou. Fizeste-me acreditar em algo que eu já não julgava ser possível. Uma equipa ganhar, a jogar maravilhosamente bem e sempre com a mesma identidade, quer esteja a ganhar ou a perder. A jogar no chão, de pé para pé, seja na frente de ataque, seja na zona defensiva, sempre com os mesmos princípios de jogo. Dominando, esmagando e, muitas vezes, ridicularizando adversários poderosos, que se limitavam a defender no seu meio-campo, muitas vezes "enfiados", literalmente, na sua área. E tudo isto, sempre com a bola rodar, a circular, com técnica e com classe. Há que dizê-lo, meramente por curiosidade e para quem desconhece, que durante estes quatro anos, jogaste contra 247 equipas diferentes e nunca a tua equipa acabou um jogo com menos posse de bola que o adversário. Aliás, a tua equipa chegou a atingir posses de bola estratosféricas, nomeadamente no futebol actual, na ordem dos 70 a 80%. Muitas das vezes, contra as melhores equipas da Europa e do Mundo... O Barça teve uma posse de bola média durante estes quatro anos, na ordem dos 68% e isto diz muito acerca da identidade e, mais ainda, acerca da qualidade da equipa que construíste. Ter estes princípios de jogo, esta qualidade e ser bem sucedido, é algo sem precedentes e uma ideia quase "romântica" no futebol dos dias de hoje.
No fundo, foi este o futebol que eu sonhava ver, que nunca tinha visto e que já pensava ser impossível vê-lo. A última e única vez que vi algo parecido, foi no Barça treinado por Cruyff (acredito que seja a tua grande influência) no início dos anos 90 e da qual tu fazias parte. Pensava que o futebol feito, essencialmente, de habilidade e técnica tinha acabado e que a táctica e a força fisíca eram os grandes pilares para uma equipa ser bem sucedido neste futebol "moderno". Salvaste-me! E mesmo que alguns não saibam, salvaste o futebol.
Deste modo e por tudo isto, agradeço-te. Agradeço-te também pela tua postura. Por seres um gentleman (mesmo quando foste provocado). Por teres admitido que falhaste, quando isso aconteceu. Por teres sabido reconhecer mérito aos outros, nas poucas vezes em que foste derrotado, mesmo quando isso aconteceu contra os teus maiores rivais.
Pep, agradeço-te, sobretudo, por teres construído a equipa que me mostrou o melhor futebol que alguma vez vi na vida e que, provavelmente, nunca mais verei com tamanha qualidade. Acima de tudo, como adepto de futebol, agradeço-te teres-me proporcionado a oportunidade de um dia mais tarde poder dizer, em conversas sobre bola com os meus meus filhos e netos, que tive o prazer, o privilégio a a honra de ver jogar a melhor equipa de futebol de todos os tempos.
O meu muito obrigado e felicidades para ti.
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